terça-feira, 31 de agosto de 2010

A linguagem em São Tomás de Aquino

Em geral a antropologia interpreta a língua como sendo um produto histórico-social. Já na ramificação filosófica desta ciência, o homem é considerado como sendo um ser de “linguagem” e um ser “social” e ao utilizar-se da linguagem, ele se revela e revela a realidade do mundo. Numa perspectiva tomista e antropológica cristã, o homem por ser naturalmente social, não lhe basta sentir, julgar ou querer. Ele deseja comunicar as suas impressões e pensamentos aos seus semelhantes e como veremos, até mesmo com o próprio Deus.

Por isto, não podendo manifestar a idéia propriamente, ele dá sinais e fala. Desta maneira, a linguagem se fundamenta na capacidade que os homens têm para comunicar-se entre si, e isto é feito através de símbolos, entre outros os lingüísticos, fazendo com que as sensações ou impressões sejam detectadas por um ou vários dos nossos sentidos.

4.2.1 A capacidade racional do homem e a linguagem

Segundo o Doutor Angélico, os homens superam as outras criaturas devido a sua capacidade racional. No ensaio “Deus – finalidade teleológica do homem, segundo Tomás de Aquino” este conceito é assim explicado:

Esta, [capacidade racional], faz com que os homens tenham o domínio sobre os seus atos, assumindo assim um papel ativo. Some se a isso, o fato do homem caminhar para um fim, a partir de sua própria ação, quando conhece e ama a Deus.

Por motivos especiais, o Aquinense julga que as criaturas racionais estão sujeitas à providência Divina de uma forma diferente dos outros animais. Um desses motivos seria a perfeição da natureza, pois a partir desta os homens passam a ter domínio sobre todos os seus atos, podendo assim, ser considerados livres, ou seja, eles podem agir por si mesmos nas suas operações. Além disso, coloca o homem numa posição mais privilegiada: ‘a dignidade do fim’. (COSTA; ANDRADE, 2007, p.2)

Tomás de Aquino coloca o homem numa posição mais privilegiada por causa da “dignidade do fim”. [1] (AQUINO, 2006)

Continuam Costa e Andrade:

As outras criaturas são mais passivas nas suas ações e só podem atingir uma finalidade por certa semelhança de sua participação. Dito de outra forma, os animais possuem uma natureza instrumental [atuado por outro], ou seja, eles são naturalmente sujeitos à servidão. Já o homem, possui uma natureza de agente principal. [Atuado por si mesmo] (COSTA; ANDRADE, 2007, pp. 2-3)

Sobre este conceito o Magistério da Igreja Católica ensina:

De todas as criaturas visíveis, só o homem é capaz de conhecer e amar o seu Criador, é a única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma; só ele é chamado a partilhar, pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus. Com este fim foi criado, e tal é a razão fundamental da sua dignidade. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 103)[2]

A capacidade lingüística do ser humano faz com que ele se diferencie radicalmente do resto dos animais. Por isto, de acordo com esta escola de pensamento, que difere das outras enunciadas neste trabalho, considera que a linguagem não pode ser meramente explicada em termos de operações mecânicas de um corpo material, mas como o resultado de uma mente reacional.

Ao que se conclui, que a incapacidade que os animais têm de utilizarem de uma linguagem – como o vocábulo é empregado neste trabalho – é uma evidência de que não possuem inteligência. Somente os homens, entre os seres vivos, têm o habito de comunicar um pensamento de um para outro, e só ele, entre os seres espirituais, é capaz de expressar-los através de sons sensíveis. A linguagem não torna presente o objeto, mas sim a sua idéia, por meio de um signo que o substitui.

Na “S.C.G.” as naturezas intelectuais têm mais afinidades com o conjunto do que as outras naturezas, pois cada criatura intelectual identifica-se de certo modo com todas as coisas. Segundo Tomás de Aquino, todas as demais substâncias estão sujeitas à providência divina por causa das substâncias intelectuais.[3] (AQUINO, 2006)

Ao que Nunes Costa e Vilar Andrade fazem a seguinte avaliação sobre este postulado tomista:

A substância intelectual, a qual Aquino se refere, usa de todas as coisas por causa dela mesma e isso é uma tarefa constante, não por apenas por conveniência. O Criador do universo ordena todas as coisas para sua operação, esta operação é a ultima perfeição da coisa, ou seja, tanto o homem como os animais recebem de Deus a direção das suas ações, mas no caso do animal, essas direções são apenas por causa da espécie, no caso do homem, elas são em função da espécie do individuo. (COSTA; ANDRADE, 2007, p. 3)

Desta maneira, na linguagem a ligação que existe entre um som sensível com um sentido definido (significado) é possível porque no homem, composto de corpo e alma, não existe uma separação entre a percepção e os pensamentos espirituais, já que as idéias derivam da percepção por abstração e sempre mantêm certa relação com o esquema sensível.

Entre os homens, a compreensão recíproca entre o sujeito que fala e o receptor da mensagem, está no fato de terem uma natureza composta de corpo e alma, e que faz com que sejam capazes, numa dimensão sensível-espiritual, de identificarem intencionalmente o objeto com a idéia. (AGUILAR, 2005)

A função da linguagem é de manifestar exteriormente um pensamento, porém é necessário fazer uma precisão importante a este conceito pois ele pode ser insuficiente.

Para Tomás de Aquino o pensamento é entendido no senso conceptual, ou racional. De maneira que mesmo que alguns animais possam ter acesso a uma expressão simbólica abstrata, não são capazes, pelo menos ainda não se pode estabelecer, que sejam capazes de exprimir uma idéia ou conceito.

Por isto segundo a corrente espiritualista, apesar de que os animais possam utilizar um sistema sofisticado de comunicação para manifestar as suas necessidades (fome, sede) e emoções (desejos, medos, tristezas ou alegrias), porém ao contrário do homem, são incapazes de estabelecer um vinculo entre a exteriorização dos desejos com a transmissão de um pensamento racional.

Na visualização tomista, a linguagem é entendida como sendo um sistema de signos sensíveis pelos quais o homem transmite mensagens de caráter espiritual. Seus elementos, termos de relação e propriedades demonstram que brotam de um ser inteligente e racional, composto de corpo e alma.

4.2.2 O transcendental da linguagem

Na Antiguidade a ênfase está no ser e na natureza, no racionalismo cartesiano a linguagem é um elemento de verificação e já no existencialismo sartreano ela gira em função de uma necessidade individual sem desdobramentos e sem relação com nada de absoluto. Em Tomás de Aquino a linguagem ela está sob um prisma transcendental.

No cosmocentrismo dos antigos gregos, a “physis” é vista como uma realidade eterna e in-criada, na qual não há “alguém” transcendente que tenha criado o mundo. Já para o medieval este “alguém” existe, e é Deus e a realidade é divina e transcendente.

Ao contrário dos antigos gregos, para os medievais existe ‘alguém’ que criou o mundo ou a natureza. Esse ‘alguém’ é Deus. Dessa maneira, se para o pensamento cristão há “algo” além da natureza, então se trata de um pensamento do tempo – da história! – dirigido consoante os desígnios de um puro ser, isto é, Deus. (MEDEIROS, 2006, p.2)

E característica da cultura medieval está presente em Tomás de Aquino enquanto um paradigma.

Em “Santo Tomás de Aquino – Sobre a Diferença entre a Palavra Divina e a Humana” é analisado de como o falar é a operação própria da inteligência na qual entre a realidade descrita pela linguagem e o som da palavra existe um terceiro elemento:

Ora, entre a realidade designada pela linguagem e o som da palavra proferida, há um terceiro elemento, essencial na linguagem, que é o conceptus, o conceito, a palavra interior [verbum interius, verbum mentis, verbum cordis], que se forma no espírito de quem fala e que se exterioriza pela linguagem, que constitui seu signo audível [o conceito, por sua vez, tem sua origem na realidade]. (LAUAND, 1993, p. 6)

4.2.3 “Sumbolh”

O transcendental tomista pode ser relacionado com o “sumbolh” (símbolo) que na Grécia Antiga significava a metade de um objeto quebrado, por exemplo, uma moringa, em que as duas partes eram divididas entre dois contratantes. Para liquidar e terminar uma dívida era preciso dar provas da qualidade do contratante, sendo ele mesmo ou outro de direito, e para isto era necessário que se apresentasse uma das partes para que ao unir à outra, a moringa voltasse a ficar inteira. Para Fafián, a filosofia nasceu na Grécia Antiga ao procurarem fazer uma distinção entre a ciência com o mito e os símbolos, todavia para Platão isto acabou sendo uma constante procura de tentar colar e ligar as duas partes que estão separadas. (FAFIÁN, 2002)

O “sumbolh” em Tomás de Aquino consiste em que a criatura se reporte a Deus, não que o Criador precise de outro pedaço para se complementar, pois Ele é a unidade em essência, todavia para a Sua glória externa pede o que dEle volte para Ele, como encontramos em Isaías (55, 10-11):

Isto diz o Senhor: ‘Assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vêm irrigar e fecundar a terra e fazê-la germinar e dar semente, para o plantio e alimentação, assim a palavra que sair de minha boca: não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi ao enviá-la’. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 1015)

Contudo, para a criatura a “moringa” só fica inteira quando os dois pedaços estão ligados. É nessa relação entre Criador e criatura que a linguagem se manifesta, não só como um mero falar, mas atitudes e gestos que expressam o que vai ao seu coração e interior. O Magistério da Igreja interpreta esta formulação:

Os sinais e os símbolos ocupam um lugar importante na vida humana. Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais através de sinais e símbolos materiais. Como ser social, o homem tem necessidade de sinais e símbolos para comunicar com o seu semelhante através da linguagem, dos gestos e das ações. O mesmo acontece nas suas relações com Deus. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 323)[4]

Na “S.T.”, o filósofo medieval realça que para poder entender o que é Deus, é necessário utilizar-se de analogias para facilitar a compreensão dos nossos sentidos, e é principalmente pela linguagem analógica com os signos e símbolos, de que o “falar” com Deus se estabelece. Conceito com o qual João Paulo II assim se identifica:

De fato, a fé pressupõe claramente que a linguagem humana seja capaz de exprimir de modo universal — embora em termos analógicos, mas nem por isso menos significativos — a realidade divina e transcendente. Se assim não fosse, a palavra de Deus, que é sempre palavra divina em linguagem humana, não seria capaz de exprimir nada sobre Deus. (JOÃO PAULO II, 1998, art. 84)

De acordo com a concepção de Tomás de Aquino, como já descrevemos a linguagem humana é um sistema de signos sensíveis pelos quais nós transmitimos mensagens de caráter espiritual. Seus elementos, termos de relação e propriedades demonstram que brotam de um ser inteligente e racional, composto de corpo e alma.

Certamente ela tem uma função descritiva dos objetos, idéias e acontecimentos, mas não é simplesmente caracterizada por ser a manifestação e a expressão do pensamento, pois os surdos e mudos de nascença podem perfeitamente pensar o mesmo que as outras crianças, sem saber as mesmas palavras comuns e sem uma mesma linguagem articulada. Assim para Tomás de Aquino a linguagem é também uma palavra interior, enquanto um dialogo da alma com ela mesma.

Entretanto a linguagem humana é contingente, subordinada e relacionada aos atributos de um ser absoluto, e aqui temos a presença do transcendental que é o alicerce da escolástica tomista. (MEDEIROS, 2006)

4.2.4 O falar de Deus na Criação

Na concepção de Tomás de Aquino tudo tem a sua origem no Criador, seja a criatura ou a criação em geral é um produto do “falar” de Deus. Sobre este enunciado comenta Lauand:

Assim, para Tomás, a criação é também um ‘falar’ de Deus, do Verbum [razão materializada em palavra]: as criaturas são, porque são pensadas e ‘proferidas’ por Deus: e por isso são cognoscíveis pela inteligência humana.

[...] Assim como a palavra audível manifesta a palavra interior, assim também a criatura manifesta a concepção divina [...], as criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus. (LAUAND, 2006, p. 23)

Macieras Fafián é participe desta idéia ao ponderar:

O primeiro autor da linguagem é Deus, que instruiu Adão na denominação das criaturas, mas é o homem quem configura a sua linguagem na medida em que se ia dando oportunidade à experiência e o uso das criaturas. (FAFIÁN, 2000, p.50, tradução nossa)

A manifestação da linguagem deve ser analisada a partir dos seus primórdios (ECO, 1993) tal como está descrita no Gênesis (1, 1-8):

No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.

Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ e a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas, Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia.

[...] Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. E assim se fez. Deus chamou ao firmamento CÉUS. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 49)

Para Eco a criação foi um “falar” de Deus, pois “faça-se a luz! e a luz foi feita” (Gênesis 1,3), com isto postula:

A criação se produziu por um ato da palavra, e pelo fato de dar nome as coisas na medida em que vão sendo criada, isto confere a Deus um estatuto ontológico: “E Deus chamou a luz ‘dia’ e as trevas ‘noite’… [e] chamou o firmamento ‘céu’”. (ECO, 1993, p.11, tradução nossa) [5]

Notamos aqui a relação existente entre a criação do universo, enquanto uma realização da vontade divina manifestada através da palavra. As Escrituras no Hino à Providência de Deus confirma esta interpretação quando diz que “A palavra do Senhor criou os céus” e que quando falou “toda a terra foi criada”:

A palavra do Senhor criou os céus,

e o sopro de seus lábios, as estrelas.

Como num odre junta as águas do oceano, e

Mantém no seu limite as grandes águas.

Adore ao Senhor a terra inteira,

e o respeitem os que habitam o universo!

Ele falou e toda a terra foi criada,

Ele ordenou e as coisas existiram. (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 1016)[6]

Ao desenvolver a sua teoria Umberto Eco se apóia no Gênesis (2, 15-17):

O Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Édem para cultivá-lo e guardá-lo. Deu-lhe este preceito: ‘Podes comer do fruto de todas as arvores do jardim; mas não comas do fruto da arvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente. (BIBLIA SAGRADA, 2000, p. 50)

Ao que o pensador italiano comenta:

No 2, 16-17 [Gênesis] pela primeira vez o Senhor fala com o homem, colocando à sua disposição todos os frutos do paraíso terrestre, e advertindo-o que não coma do fruto da árvore do bem e do mal. Há um dúvida em saber em que língua Deus falou com Adão, e uma grande parte da tradição pensará numa espécie de língua de iluminação interior, em que Deus, como acontece em outras partes da Bíblia, se expressa mediante de fenômenos atmosféricos: trovões e relâmpagos. Entretanto se pode interpretar, e aqui surge a primeira possibilidade de uma língua, mesmo sendo intraduzível em termos dos idiomas conhecidos, é compreendida, não obstante, por quem a escuta, por um dom ou estado de graça especial. (ECO, 1993, p. 11. tradução nossa) [7]

Desta maneira, para Tomás de Aquino não é só Deus que fala, mas as próprias criaturas são Suas palavras. No artigo “Diferença entre a Palabra Divina e a Humana” Lauand pondera:

Dentre as muitas e variadas formas de interpretação ‘Deus fala’, há uma especialmente importante nas relações entre Deus e o homem: não é por acaso que João emprega o vocábulo grego Logos [Verbum, razão, palavra] para designar a segunda Pessoa da Ssma. Trindade que ‘se fez carne’ em Jesus Cristo: o Verbum não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação [cfr. Jo 1,3]. E a Criação deve ser entendida precisamente como projeto, design feito por Deus através do Verbo.

[...] Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre, que intenta negá-la: ‘Não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la’. De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma: só se pode falar em essência, em natureza, em ‘verdade das coisas’, na medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor, constituindo-as.

A ‘natureza’, especialmente no caso da natureza humana, não é entendida pela Teologia como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um projeto vivo, um impulso ontológico inicial, um ‘lançamento no ser’, cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente pelo ato criador, que, no entanto, requer a complementação pelo agir livre e responsável do homem.

Nesse sentido, Tomás fala da moral como ultimum potentiae, como um processo de auto-realização do homem; corresponde-lhe continuar, levar a cabo aquilo que principiou com o ato criador de Deus. Assim, todo o agir humano [o trabalho, a educação, o amor, etc.] constitui uma colaboração do homem com o agir divino, precisamente porque Deus quis contar com essa cooperação. (LAUAND, 1993, p. 7)

De acordo com Tomás de Aquino, Deus se revela pela linguagem universal da criação, obra da sua Palavra. Mas, como vimos na citação acima, Deus no seu ato criador pede a cooperação e a participação do homem, e por isto o Seu falar tem que se manifestar através de uma linguagem humana para ser acessível e compreensível aos homens:

Na condescendência de sua bondade, Deus, para revelar-se aos homens, fala-lhes em palavras humanas. Com efeito as palavras de Deus, expressas por línguas humanas, tal como outrora o Verbo do Pai Eterno, havendo assumido a carne da fraqueza humana, se fez semelhante aos homens. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 39)[8]

4.2.5 A Palavra e o Verbo

Nas Sagradas Escrituras, ferramenta fundamental no pensamento de Tomás de Aquino, a palavra de Deus é o Verbo, pois:

Por meio de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus pronuncia uma só Palavra, seu Verbo único, no qual se expressa por inteiro.

Lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só e um só é o Verbo que Se faz ouvir na boca de todos os escritores sagrados, o qual, sendo no princípio Deus junto de Deus, não tem necessidade de sílabas, pois não está sujeito ao tempo. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2001, p. 39)[9]

Para Tomás de Aquino “verbum” em latim, significa não só a palavra enquanto um som sensível com um sentido definido (significado), mas é também a segunda Pessoa da Ssma. Trindade, que é o Filho. Sobre esta diversidade de significados Lauand pondera:

Uma tal acumulação semântica não se dá em português e, assim, das 58 ocorrências de verbum no opúsculo de Tomás, somente numas poucas [cerca de meia dúzia] ele se refere estritamente à palavra sonora. Quando não se trata do Verbo divino, a maior parte das incidências de verbum diz respeito ao conceito e, principalmente, àquilo que há de comum entre a palavra sonora e o conceito [e o Verbo Divino também, por vezes].

Ora, dado o relevo que a linguagem ocupa no pensamento e na metodologia de Tomás, o leitor contemporâneo perderia muito de sua argumentação, se não estivesse prevenido para este fato e sua importância. Assim, sempre que depararmos com ‘palavra’, ‘conceito’ e ‘Verbo’ devemos nos lembrar que, para Tomás, estas idéias estão natural e espontaneamente identificadas em verbum. (LAUAND, 1993, p.4)

Fundamentando-se em Tomás de Aquino, Lauand pondera que a palavra é aquilo que está presente interiormente na nossa alma e que exteriormente é significado pela voz, que é caracterizado como sendo o “verbum”. (LAUAND, 1993)

O pensador tomista brasileiro salienta que existe uma diferença entre a nossa palavra “verbum” e a Palavra divina “Verbum”, é que a nossa é imperfeita, contingente e limitada, que desaparece e desvanece, enquanto que a Divina é perfeitíssima e fonte de vida eterna. (LAUAND, 1993)

Este conceito é explicado na Liturgia das Horas:

João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra [Jo 1,1]. João era a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde o princípio.

Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.

Entretanto, mesmo quando se trata de alimentar nossos corações, vejamos a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer a palavra já está em meu coração. Se quero, porém, falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o que já está no meu, recorro à voz e por ela falo contigo. O som da voz te faz entender a palavra; e quando te faz entendê-la, este som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração, sem haver deixado o meu.

[...] Guardemos a palavra; não percamos a palavra concebida em nosso íntimo. (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 223) [10]

Na concepção de Tomás de Aquino, O Verbo e a Palavra formam “um” em Nosso Senhor Jesus Cristo, dando a Palavra o aspecto cristolólico:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o verbo era Deus. Ele estava no principio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. [Jo 1, 1-3] João, muito conscientemente voltou às palavras que estão no começo da Bíblia e leu de novo o relato sobre a Criação a partir de Cristo para contar, outra vez e definitivamente, por meio de imagens que é a Palavra com que Deus quer mover os nossos corações. (RATZINGER, 1992, p. 25 tradução nossa) [11]

Para o homem o escutar e entender o falar de Deus é por onde ele se auto-realiza, como diz o Salmo:

Vossa palavra é uma luz para os meus passos, é uma lâmpada luzente em meu caminho.

Eu fiz um juramento e vou cumpri-lo: Hei de guardar os vossos justos julgamentos!

Ó Senhor, estou cansado de sofre; vossa palavra me devolva a minha vida!

Que vos agrade a oferenda dos meus lábios; ensinai-me, ó Senhor, vossa vontade!

Constantemente está em perigo a minha vida, mas não esqueço, ó Senhor, a vossa lei.

Os pecadores contra mim armaram laços; eu porém não reneguei vossos preceitos

Vossa palavra é minha herança para sempre, porque ela é que me alegra o coração!

Acostumei meu coração a obedecer-vos, a obedecer-vos para sempre, até o fim! (LITURGIA DAS HORAS, 2000, p. 1078) [12]

Assim na concepção de Tomás de Aquino, o homem é um ser naturalmente social e de linguagem: não lhe basta querer expressar o que sente e quer, pois sendo racional deseja também comunicar as suas impressões e seus pensamentos aos seus semelhantes e com Deus.

Por isto, a linguagem humana, como interpretada pela corrente espiritualista, é um sistema de signos sensíveis pelos quais o homem transmite mensagens de caráter racional como também espiritual, como uma palavra interior num dialogo da alma com ela mesma.



Através do “verbum” (razão materializada em palavra), Deus se torna cognoscível à inteligência humana, e esta só alcança o seu objetivo pleno quando se orienta para o seu fim transcendental ao se reportar a outra metade do “sumbolh”, que é Deus.

Pe. António Coluço, EP
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[1] Praecellunt enim alias creaturas et in perfectione naturae, et in dignitate finis. “S.C.G.” III, cap. CXI, 1. (grifo nosso)

[2] Art. 356.

[3] Ex his quidem quae supra determinata sunt, manifestum est quod divina providentia ad omnia se extendit. Oportet tamen aliquam rationem providentiae specialem observari circa intellectuales et rationales naturas, prae aliis creaturis. “S.C.G.” III, cap. CXI, 1.

[4] Art. 1146

[5] La creación se produce por un acto de habla, y sólo al nombrar las cosas a medida que las va creando les confiere Dios un estatuto ontológico: “Y Dios llamó a la luz “dia” y a las tinieblas “noche”… (y) llamó al firmamento “cielo”.

[6] Laudes, Quaresma.

[7] En 2, 16-17 el Señor habla por vez primera al hombre, poniendo a su dispo-sición todos los frutos del paraíso terrenal, y advirtiéndole que no coma el fruto del árbol del bien y del mal. Resulta dudoso saber en qué lengua habló Dios a Adán, y una gran parte de la tradición pensará en una especie de lengua de iluminación in-terior, en la que Dios, como por otra parte ocurre en otras páginas de la Biblia, se expresa mediante fenómenos atmosféricos: truenos y relámpagos. Pero si se inter-preta así, se apunta entonces la primera posibilidad de una lengua que, aun siendo intraducibie en términos de idiomas conocidos, es comprendida, no obstante, por quien la escucha, por un don o estado de gracia especial.

[8] Art. 101

[9] Art. 102

[10] Advento. Sto Agostinho. Sermo 293, 3: PL 38, 1328-1329

[11] “En el principio la Palabra existía y la Palabra estaba con Dios y la Palabra era Dios. Ella estaba en el principio con Dios. Todo se hizo por ella y sin ella no se hizo nada de cuanto existe.” (/Jn/01/01-03). Juan, muy conscientemente, ha vuelto a tomar aquí las palabras con las que comienza la Biblia y ha leído de nuevo el relato de la Creación a partir de Cristo para contar, otra vez y definitivamente, por medio de las imágenes qué es la Palabra con la que Dios quiere mover nuestro corazón.

[12] Quaresma. Salmo 118 (119), 105-112 XIV (Nun)

sábado, 28 de agosto de 2010

Vocações, Orações, Missões


Estamos chegando ao final deste abençoado mês de agosto, chamado de mês vocacional, quando a mãe Igreja nos convida a refletir acerca das vocações. É grave dever de todos os católicos o incentivo e o fomento das vocações sacerdotais. Este dever pertence a toda a comunidade dos fiéis, para que a própria comunidade ofereça seus membros para a vida ministerial.

Quantas vezes não ouvimos a citação bíblica: “a messe é grande, mas são poucos os operários”, e pela qual reconhecemos que precisamos de mais pastores. Mas, como somos indiferentes com a prática vocacional! Sabemos que as necessidades de operários são muitas, mas sem dúvida que a necessidade de presbíteros para a Igreja está sempre sendo cobrada pelas comunidades que desejam ter o seu pároco.

Não podemos esquecer o apoio às famílias, que devem estar imbuídas em total espírito de oração, onde lá se encontra o primeiro seminário das vocações.

Os presbíteros, entretanto, em primeiro lugar são responsáveis pelo fomento vocacional, pelo incremento das vocações, seja pelo seu testemunho pessoal, seja pelo seu zelo pastoral em suas comunidades. Isso certamente atrairá os jovens para que também abracem esse mesmo testemunho e este mesmo amor pelos irmãos.

Nesta semana, consultado o Conselho de Presbíteros de nossa Arquidiocese, estamos encaminhando à Cúria Metropolitana a autorização para elaborar decretos para a criação de cinco novas paróquias. É um claro sinal de crescimento do trabalho da Igreja e das necessidades que o crescimento populacional nos impõe. Muito mais presenças, tanto de paróquias como de pequenas comunidades, grupos, núcleos de evangelização, círculos bíblicos ou outros tipos de organizações são necessárias para que a capilaridade da evangelização aconteça em nossa arquidiocese.

Junto com as preocupações de um bom início para as novas comunidades paroquiais surgiu também o incremento do trabalho de partilha entre as paróquias para a ajuda mútua nas necessidades que vão surgindo. Aqui iremos ver até que ponto o interesse pela evangelização e catequese está acima dos demais interesses em nossas comunidades e suas lideranças. O projeto “que todos sejam um” de partilha entre as paróquias já existia como um embrião, agora foi fomentado com um grupo de padres, representando todos os vicariatos, responsabilizando-se de levá-lo adiante.

Com o tamanho atual das paróquias, que exigem que tenhamos mais que um padre atendendo à comunidade, também o criar novas circunscrição supõe a existência de sacerdotes para serem nomeados párocos. Daí vem o nosso apelo neste final de mês vocacional, rezando em especial pelas vocações sacerdotais, supondo, é claro, a caminhada de santidade na vida de nossos jovens. Para isso supõe valorização dos mesmos, unidade entre o presbitério, preocupação com o que é essencial nessa caminhada e, principalmente, busca comum da santidade concreta. As riquezas da diversidade devem contribuir para a unidade ainda maior e a valorização das diferenças enquanto caminhamos juntos.

A vocação, certamente, sempre depende da livre ação de Deus, mas também é incentivada pelo testemunho dos sacerdotes, generosos, alegres, sinceros, verdadeiros. Urge, portanto, o testemunho daqueles que já deram o seu “sim” ao Senhor, como, aliás, em todas as vocações.

Poderíamos destacar três aspectos mais significantes desse testemunho vocacional: o primeiro, a amizade profunda com Cristo, ou seja, permanecer no seu amor e aprender a estar com Ele, em sua comunhão, e mantendo com Ele diálogo constante pela oração (“vinde e vede”, “permanecei comigo”). O segundo será o dom total de si mesmo a Deus, de onde vem a capacidade da entrega total e incondicional, completa, contínua e fiel (“quem quiser me seguir”, “quem põe a mão no arado...”, “alguns não se casam por causa do reino dos céus”). Terceiro: viver em comunhão com os irmãos e irmãs de caminhada (“que todos sejam um”, “vede como se amam”).

No testemunho sacerdotal, as pessoas devem perceber a superação das divisões, das rupturas, das incompreensões deste mundo. Nele as pessoas devem conhecer o que é o perdão.

Portanto, não sejamos indiferentes. Pelo poder da oração peçamos ao Senhor, mas também sejamos generosos quanto ao apoio efetivo e real às vocações. Vivemos num mundo materialista, em que parece que o espiritual está anulado. Precisamos de pessoas que nos digam o contrário; pessoas que caminhem firmes em sua fé e que espalhem para outros o olhar de misericórdia de Deus. Estes serão os bons sacerdotes de que tanto precisamos.

A chave de toda vocação é perceber que Deus tem um plano para cada um de nós. E se eu for chamado a segui-Lo, devo responder com generosidade e amor a este chamado. É sentir-se atraído por Deus!

Recordemos o apelo feito pelo Papa Bento XVI aos jovens americanos, em sua visita aos EUA: “lança para tua vida um estilo caracterizado pela caridade, pela castidade e pela humildade, imitando a Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, do qual devem tornar-se pedras vivas”. Toda a Igreja é responsável, portanto, pelo fomento das vocações.

De forma concreta, temos a chamada obra pelas vocações sacerdotais – OVS, que, infelizmente, não vemos constituídas e organizadas em muitas de nossas paróquias e outros grupos vocacionais como o Serra, GVA. É uma grande responsabilidade, pois os Ministros Ordenados e os Leigos deveriam ter essa grande preocupação pelo fomento e apoio incondicional ao serviço vocacional.

Temos, porém, testemunhos que nos alegram, como a compreensão e ajuda tanto em alimentos como de outras maneiras de muitas paróquias que fazem coletas em prol dos Seminários Arquidiocesanos São José e Rainha dos Apóstolos. São exemplos que deveriam se espalhar em todo o ambiente do nosso Arcebispado.

Em um cântico vocacional antigo dirigido a São José se dizia: “mandai vocações, padres pedem as multidões, sacerdotes para o Brasil” – vemos como isso continua muito atual. Cada dia ouço pedidos desse tipo chegando e um povo sedento de verdadeiros, coerentes e santos pastores. Indo à casa da mãe, peçamos a José que também interceda por nós.

A nossa alegria é também pelos nossos atuais seminaristas, seja pelo entusiasmo juvenil e cheios de ideais que nos fazem agradecer ao Senhor ao ver vocações de todas as regiões e situações de nossa Arquidiocese e desejosos de abraçar a vida presbiteral renovando assim o nosso presbitério que os acolhe como confiança e generosidade. A cada época encontramos características próprias nas vocações e quando temos abertura para a ação do Espírito Santo saberemos valorizar a diversidade em cada situação histórica. Agradeço sinceramente a todos que trabalham nessa área, desde o despertar e acolher, passando pela formação em todos os níveis até o acolhimento generoso e ajuda material.

Lembremos, portanto de Maria, neste final de semana que, como dissemos, iremos ao seu Santuário Nacional, que nos convida a um sim sincero. Imitemos o seu exemplo, cultivando em nosso coração a capacidade de nos maravilharmos com o projeto salvífico de Deus em nossas vidas e de sermos dóceis aos Seus apelos. Ela, certamente, nos ajudará a prosseguirmos firmes no caminho do nosso discipulado.

Dom Orani João Tempesta

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

VIDA CONSAGRADA por Dom Orani João Tempesta

No primeiro domingo deste mês vocacional rezamos pelos nossos padres. Domingo passado agradecemos a vida e o dom da paternidade, colocando nossos pais, vivos e os que estão na glória de Deus, diante do altar. O terceiro domingo é dedicado a todos os consagrados: freiras, freis, irmãos e irmãs que dão a sua vida pelo Evangelho na contemplação ou na ação pastoral, segundo os conselhos evangélicos. A vida consagrada é um desdobramento da vida batismal, na esteira dos Conselhos Evangélicos da pobreza, da obediência e da castidade.

Toda a nossa existência de fiéis cristãos deveria ter como destaque a nossa vida batismal, pois nela somos incorporados a Cristo, nela somos libertos do pecado e assim regenerados pelo Espirito Santo. Nela nos tornamos participantes da vida trinitária. Portanto, a nossa consagração começa no batismo, pois este é fonte de responsabilidade e de deveres, tal como servir aos outros na comunhão da Igreja.

A vida consagrada em que se professa os três votos mencionados é uma resposta a esta consagração batismal dentro de um chamado a um carisma especial na Igreja. É uma resposta radical ao extraordinário amor de Deus sobre nossas vidas. É um ir além, numa vida comprometida com a implantaçaõ do Reino de Deus entre os homens e entre as mulheres.

O cristão sempre é chamado a jogar suas redes em águas mais profundas, ao se provocar pelo estímulo a uma nova vida, mais radicalizada e mais enrraizada em Deus. Corre-se o risco para Deus, e descobre-se que só Deus basta para nossa vida.

No processo da consagração ouve-se a voz de Deus que chama. A Igreja reconhece este chamado e o autentica ao autorizar a existência dos Institutos de Vida Consagrada, que tanto bem fizeram e fazem ao Povo de Deus e a toda população, através da entrega da própria vida pelo irmão, e, além dos vários serviços de missão, evangelização, catequese, também nos diversos organismos de caridade, educacionais, do cuidado com a saúde, no desvelo com a terceira idade e de promoçao humana existentes.

Deus chama homens e mulheres, através da vida consagrada, para um missão de amor em favor dos homens, e, principalmente, pelos preferidos: os pobres.

A riqueza da Igreja, já nos dizia o mártir São Lourenço, celebrado nesta semana, não está nos seus edifícios que são do Povo de Deus ou no propalado, cobiçado e imaginado poder financeiro, mas nos pobres, nos que sofrem, nos que a Igreja acolhe, educa, cuida e apresenta como o seu inexorável tesouro que jamais a traça comerá.

Os religiosos e congrados são um dom precioso da Igreja e do mundo, este tão carente, tão sedento de Deus e de sua palavra, mas também de testemunhos.

Porém, antes mesmo do serviço que os religiosos prestam às pessoas, a sua mais importante missão é o « ser », quer dizer, o testemunho de vida em comunidade, doada diariamente com alegria e generosidade. São os « sinais escatológicos » do Reino de Deus. Nestes últimos tempos, ao lado de antigas tradições de consagrados juntaram-se muitas outras novas experiências de grupos de pessoas que atualizam dentro das atuais realidades e, muitas vezes, como sinais de contradição: o chamado de Deus para essa consagração radical. Dentro dos vários estilos de carismas encontramos o equilíbrio entre a vida de ação e contemplação, de oração, de trabalho – presentes em cada pessoa, em cada instituto e na própria estrutura eclesial.

No mundo do descartável, do prazer sem limites, na opulência do dinheiro e do ter, da autossuficiência, sentimo-nos atraídos, através da vida consagrada, a uma outra proposta de seguimento mais sublime de Jesus Cristo através da dedicação a Deus pelos conselhos evangélicos e, desta forma, são um doce e eloquente sinal de Deus neste mundo.

Neste dia de oração pela Vocação à Vida Religiosa quero enviar um afetuoso abraço de encorajamento na sua vocação e na sua missão a todos os consagrados que trabalham no âmbito de nossa Arquidiocese, que fazem a diferença do rosto de Cristo e da Igreja no Rio de Janeiro. Agradecemos a Deus por nos proporcionar tantas vocações na vida consagrada, e pedimos-Lhe que estes continuem a ser um sinal de graça perene no mundo, na construção da justiça e do amor.

Por isso, agradecidos a Deus pela vocação consagrada, peçamos novas e autênticas vocações para este serviço e que a Trindade ilumine todos os que continuam dando passos para que o Reino de Justiça e de Paz se estabeleça entre nós pelo testemunho dos que deixam tudo para trás, por amor, para ser totalmente de Jesus e da Igreja. Que Deus guarde, abençoe e proteja os consagrados!

Dom Orani João Tempesta é Cardeal Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro - RJ.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Clara de Assis: a mulher que revalorizou as mulheres em Deus.

Procurando fazer uma contextualização da questão da mulher na antigüidade, percebem-se dois momentos distintos. O primeiro é a importância das mulheres para as culturas mais antigas, onde elas eram consideradas como aquelas que conseguiam realizar o maior milagre, que era o de gerar a vida. Por isso, naquelas culturas, as mulheres, muitas vezes, eram consideradas como deusas e eram responsáveis por toda a organização da comunidade. Mas é importante destacar que existia uma harmonia entre mulheres e homens. David Elkins afirma que, "apesar de evidente a preeminência das mulheres tanto na religião como na vida, não havia indícios de alguma desigualdade flagrante entre mulheres e homens e, tampouco sinais de que as mulheres subjugassem ou oprimissem os homens."
O segundo momento é no período medieval, onde a mulher é praticamente excluída totalmente da vida das cidades e deviam cumprir em tudo as ordens do homem; neste caso, do marido e do pai. Neste período da história da humanidade, as mulheres eram consideradas "a imperfeição do masculino", ou seja, um macho que falhou, isto é, não conseguiu sê-lo e resultou num projeito arruinado. E foi com este pensamento prevalecendo que Clara de Assis mostrou uma realidade totalmente diferente daquilo que pensavam as autoridades religiosas e políticas de então.
Ainda na época de Clara, a Igreja era um sistema de poder, em que a mulher era considerada "culpada" pelo pecado, pois foi por meio de Eva que o pecado entrou no mundo e, por isso, todas as mulheres eram consideradas cúmplices do pecado e da tentação. Mas, também, existiam mulheres que, com sua coragem e determinação, mostraram que tinham seus lugares na sociedade e na Igreja. Dessa maneira, Clara de Assis merece destaque especial, pois recuperou o lugar da mulher na sociedade medieval. Uma das primeiras tarefas de Clara foi despertar todo o "sistema" para uma nova consciência: humanizar o mundo - tarefa dos homens e das mulheres. Este é um exemplo que deu certo nos projetos de Francisco e de Clara.
Diante da opressão que sofriam as mulheres, Clara soube assumir profundamente todas as suas potencialidades femininas como enriquecimento da opção pelo Evangelho de Jesus Cristo. Ela mostra com isso, a profunda e verdadeira opção de Jesus e como as mulheres de seu e do nosso tempo puderam e podem fazer uma opção livre e verdadeira pelos autênticos valores evangélicos!
Com essa nova consciência da maneira de ver a realidade da mulher, Clara traz para as mulheres de sua época a dimensão substancial de seu descobrir-se como mulher. E essa sua experiência prevalece até os dias de hoje, em que elas precisam entrar nesta dimensão do "ser mulher", de serem "femininas" e descobrirem como Clara, os verdadeiros valores que as conduzem para uma busca real da essência do ser mulher!
Clara demonstra, através da raiz e do desenvolvimento de sua jornada espiritual que, como mulher, é preciso escolher um caminho próprio, determinando seus atalhos com esforço e angústia, em direção à identificação de seu individual-feminino com Deus. O seu feminino está totalmente em Deus e, quando se auto-revela, pode tornar-se "sacramento" profundo da presença e da atuação divina.
E todo este movimento liderado por Clara de Assis, faz com que nasça um novo conceito de mulher. Ela mostra que as mulheres têm uma identificação própria, têm um jeito todo particular de ver as coisas, o mundo e as pessoas e, principalmente, uma maneira toda diferente de ver e de relacionar-se com Deus e sua atuação na história. Por isso, Clara teve uma "luta social" muito grande na tentativa de mudar a situação que prevalecia na sua época, com relação às mulheres.
Madura, despojada, pobre e livre, Clara é o protótipo da mulher disponível diante da plenitude de Deus. E isso, porque está totalmente aberta em sua psicologia integrada e sensível. Ela se fez capaz de experimentar-se como peregrina caminhante em busca do Reino de Deus, que vem. Exatamente todo o seu ser de mulher é colocado à disposição deste Reino que já vive em si e em suas Irmãs, com todos os homens e com as criaturas todas de Deus. Isso era algo inédito para as mulheres, principalmente, para aquelas que abraçaram o projeto de seguimento de Jesus Cristo, como Clara de Assis.
Toda essa forma de valorizar a mulher, o feminino é colocado por Clara de uma forma contemplativa, pois ela ensina que o seu estilo não é o de impor, nem de definir, mas de persuadir com amor e delicadeza, acompanhar, velar, cuidar, aguardar, nutrir a partir do interior de quem fala.
Clara é uma mulher na sua totalidade! Não transmite conceitos. Ela sabe que conceitos são facilmente esquecidos. Também não transmite informação, mas vive a experiência de Jesus Cristo no seu modo de ser mulher. Por isso, olhar para a vida, a vocação, a atuação de Clara é olhar para a raiz da vocação da mulher franciscana, que é edificar a Igreja, atualizando a palavra do Evangelho em e com a sua própria vida!

Frei Fernando de Araújo, OFMConv.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O PADRE por Dom Orani João Tempesta


Neste mês de agosto, conforme já salientamos em artigo anterior, celebramos um mês temático: o mês vocacional! E nós iniciamos no primeiro domingo com o Dia de Orações pelas Vocações Sacerdotais pelo fato da proximidade da celebração de São João Maria Vianney, patrono específico dos párocos e dos presbíteros em geral.

E foi assim que no recém-findo Ano Sacerdotal, em função do 150º aniversário da morte do Cura D’Ars, o Santo Padre Bento XVI o apresentou como um modelo para os sacerdotes de hoje.

O que é o ser presbítero hoje? Como deve agir o padre, hoje, na cena deste mundo em grande transformação? O presbítero, antes de tudo, é o homem da Palavra de Deus, o homem do sacramento, o homem do “mistério da fé”.

Os padres, como nos ensina o Concílio, “têm o dever primário de proclamar o Evangelho de Deus a todos os homens” (Presbyterorum Ordinis, 4). Mas, nesta proclamação está o dever também de levar cada homem e cada mulher deste mundo a um encontro pessoal com Jesus.

Hoje, mais do que antes, devemos nos empenhar para que cada pessoa possa fazer esta experiência do encontro com Deus, o devemos fazer com uma renovada esperança, mesmo nas adversidades de um mundo extremamente secularizado, liberal, ateísta e até cético.

As pessoas devem perceber no sacerdote “Aquele” a quem ele está a serviço: o que chamamos na teologia da configuração com Cristo. Nesta dimensão, encerra-se a sua vital presença na celebração eucarística, ápice da vida espiritual da Igreja, em que o sacerdote age na pessoa de Cristo. Em suma, o Sacerdote deve ser um homem em contato com Deus, e que nos leva a fazer esta mesma experiência de santidade.

A mais sublime missão do sacerdote hoje é, sem dúvida, ser um Cristo agora, pois “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre”. Porém, o padre deve avançar com o tempo, com a história, mas não deve ter uma atenção superficial sobre tal “modernidade”. É chamado a ser crítico e também vigilante com a realidade que se lhe apresenta. O grande salto qualitativo na vida de qualquer padre seria uma autêntica renovação, que é possível e necessária, e ao mesmo tempo uma grande afeição a uma plena e radical fidelidade à Palavra de Deus e à tradição da Igreja, aos quais ele serve no seu ministério. A sua primeira e fundamental vocação é a da santidade, juntamente com a de toda a Igreja!

O sacerdote é chamado a ser capaz de se entreter com cada pessoa, acreditando que o outro vale à pena; a ser uma pessoa mística e que, ao mesmo tempo, se interessa pelas coisas do mundo, pela vida do homem, nas suas angústias e alegrias, para que elas se tornem algo sagrado e agradável ao Senhor.

O sacerdote é também aquele que procura uma nova linguagem para se comunicar com o mundo de hoje, principalmente neste mundo da multimídia.

Particularmente, dirijo-me ao presbitério da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro para partilhar com todos as alegrias e tristezas, as esperanças e decepções, as vitórias e dificuldades que marcam o nosso ministério neste mundo confuso e até preconceituoso com a figura do Bom Pastor, que deve ser todo ministro do altar. Recordo as palavras que o Papa Bento XVI dirigiu aos padres por ele ordenados em junho de 2010: “O sacerdócio – insistiu – se funda na coragem de dizer sim à vontade de Deus”. Nesta orientação das vidas dos novos sacerdotes, o Papa, enfim, indicou a prioridade da Eucaristia, que sempre enche de “íntimo estupor”. “Quando celebramos a Santa Missa – disse – temos nas mãos o pão do Céu, o pão de Deus, que é Cristo, grão dividido para multiplicar-se e tornar-se o verdadeiro alimento da vida para o mundo”.

O sacerdócio ministerial é entrega, é imolação, é doar-se integralmente, é cruz. Tomar a cruz significa comprometer-se para derrotar o pecado que impede o caminho rumo a Deus, acolher cotidianamente a vontade do Senhor, aumentar a fé, sobretudo diante dos problemas, das dificuldades, do sofrimento.

Que possamos, junto com o Santo Padre Bento XVI, como na oração para o Ano Sacerdotal, repetir com todos os nossos padres, e com o mesmo fervor do Santo Cura D’ars, as palavras com que ele costumava rezar: “Eu te amo, Senhor, e meu único desejo é amá-Lo até o último suspiro da minha vida”.

Dom Orani João Tempesta