terça-feira, 29 de setembro de 2009

ANJ, DEFESA DA LIBERDADE por Carlos Alberto Di Franco

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) completou trinta anos. Ao contrário do que insinuam os representantes de uma visão amarga e rançosa, a instituição tem sido responsável pela crescente profissionalização dos jornais, pela promoção do debate aberto e democrático e pela defesa firme da liberdade de imprensa e de expressão.

A entidade, corretamente, tem feito da defesa da liberdade de imprensa sua opção preferencial. Assistimos, com a intermitência das chuvas de verão, ao rebrotar de lamentáveis tentativas de controle da informação. O caso mais recente e clamoroso é a censura judicial ao jornal O Estado de S.Paulo. A ANJ, mais uma vez, não se omitiu e foi firme na condenação do abuso antidemocrático. Sem prejuízo do meu sincero respeito pelas decisões do Judiciário, a censura prévia ao jornal é uma bofetada na democracia. O controle ao jornal é um precedente gravíssimo. É importante que a sociedade reaja. Caso contrário, a violência judicial pode se transformar em rotina judicial. E a democracia será apenas uma fachada.

Em recente artigo publicado na Folha de São Paulo, o jurista Walter Ceneviva enfatizou que proibir a publicação de noticia na mídia é, de fato, censura judicial. O direito constitucional aceita que o Judiciário possa punir quem se exceda na manifestação do pensamento, mas não permite que jornais sejam proibidos de publicar notícia, informação ou crítica.

Tese análoga foi defendida pelo ministro Marco Aurélio Melo, do Supremo Tribunal Federal, em recentes declarações ao Estadão. Melo disse que jamais decretaria censura ao Estadão, como fez o desembargador Dácio Vieira a pedido da família Sarney. “Que se combata o vazamento de conversas telefônicas, mas sem se chegar ao cerceamento da liberdade de expressão”, sublinhou. Seu colega, ministro Celso de Mello, também um sensível defensor dos valores democráticos, foi igualmente direto e certeiro: “Nada mais nocivo que a pretensão do Estado de regular a liberdade de expressão, pois o pensamento há de ser livre, essencialmente livre. Liberdade de imprensa concerne a todos e a cada cidadão. Esta garantia básica, que resulta da liberdade de expressão do pensamento, representa um dos pilares em que repousa a ordem democrática”, salientou o ministro em conversa com o jornal O Globo.

O que está em jogo, para além da garantia constitucional da liberdade de imprensa, é o direito que tem a sociedade de ser informada. É difícil imaginar que o Brasil possa superar a gravíssima crise ética que transformou amplos setores do serviço público num exercício de cinismo e arrogância, sem ampla e plena liberdade de imprensa e de expressão. Por isso, manifestações públicas de representantes da mais alta corte judicial são uma lufada de ar fresco na cidadania. O Brasil pode contar com a seriedade e o espírito democrático daqueles que têm por ofício interpretar o espírito e a letra da Constituição. A censura prévia foi enterrada com a ditadura. Felizmente. E um outro Brasil, aberto, plural e essencialmente democrático, aflorou dos cacos da repressão e do autoritarismo.

Preocupa também, e muito, o controle da mídia por grupos com projetos de poder e perfil marcadamente radical e antidemocrático. A democracia cresce quando os meios de comunicação têm trajetórias transparentes. A defesa do Estado de Direito passa, necessariamente, por um compromisso claro e histórico com plataformas de informação. Pode-se concordar ou discordar com a linha editorial das empresas de comunicação, mas há um valor inegociável: a transparência do negócio e o compromisso com valores éticos básicos. Jornalismo não é, e não deve ser, propaganda ideológica ou passaporte para ações pouco claras.

As ações da ANJ, no entanto, não se limitam à irrenunciável defesa da liberdade. A entidade tem sido, de fato, um fórum extraordinário para a discussão dos rumos do jornalismo de qualidade. Participo, com entusiasmo, do Comitê Editorial da ANJ e constato, juntamente com meus colegas de comitê, que os diários continuam fortes e têm conseguido preservar seu maior capital: a credibilidade. A confiança da população na qualidade ética dos seus jornais tem sido um inestimável apoio para o desenvolvimento de um autêntico jornalismo de buldogues. O combate à corrupção e o enquadramento de históricos caciques da política nacional só tem sido possível graças à força do binômio da democracia: jornalismo livre e opinião pública informada.

A revalorização da reportagem e o investimento exponencial na informação local tem ocupado a agenda da ANJ. Teimosamente escanteada pelo comodismo do jornalismo de hambúrguer (insosso e pouco criativo), a reportagem é uma das mais nítidas demandas do leitorado. É preciso atrair o leitor com matérias que rompam com a mcdonaldização dos jornais. Autor do mais famoso livro sobre a história do The New York Times, Gay Talese põe o dedo na chaga da crescente ausência de boas reportagens. “Não fazemos matéria direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava telefone. Queria ver o rosto das pessoas. (...) Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando”, lamenta Talese. Tem razão.

Defesa da liberdade, renovação de leitores e investimento em informação ética e bem apurada compõem um retrato de corpo inteiro do trabalho da ANJ, uma entidade comprometida com a democracia, a cidadania e o jornalismo de qualidade.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com). E-mail: difranco@iics.org.br

sábado, 26 de setembro de 2009

RETRATO DE UM PRESIDENTE por Carlos Alberto Di Franco


Não durmo nos aviões. Minha insônia aérea só é suportada com o lenitivo de um bom livro. E foi o que fiz. Dicionário Lula, um presidente exposto por suas próprias palavras, lançamento da Editora Nova Fronteira, é um livro revelador. Um Lula surpreendente, para adeptos e opositores, é o que emerge do novo livro do jornalista Ali Kamel. Utilizando de forma inédita um método de análise de conteúdo, Kamel pesquisou todos os discursos do presidente improvisados no todo ou em parte, todas as suas entrevistas e todos os programas Café com o Presidente nos períodos de janeiro de 2003 a maio de 2008 e de setembro de 2008 a março de 2009. Com a ajuda de dois softwares, um criado especialmente para o livro, Kamel pôde analisar que palavras Lula mais utiliza, de que forma e em que quantidade, com precisão matemática.

Lula é coerente ao longo do tempo? Lula tem, sobre um mesmo tema, ideias opostas dependendo do público para quem está discursando? Ele se sente confortável diante do capitalismo ou se mostra como um socialista de carteirinha? Em que se apoiam as suas opiniões, avaliações, conceitos, conclusões, afirmativas, certezas? Ou ainda: há alguma base de onde tudo isso parte? Quais são as suas formas de construir um discurso e de comunicar esse mesmo discurso?”

“O Lula que emerge destas páginas é um comunicador sem igual; um homem que vê o mundo a partir de sua experiência concreta de vida, de uma maneira que salta aos olhos; coerente, mas com incoerências importantes; um cidadão que preza os valores tradicionais da família e de Deus; um filho legítimo do capitalismo que almeja para os outros a mobilidade social que conseguiu para si (quando se tornou torneiro mecânico); um conciliador, cujo objetivo, ao menos no nível da retórica, é alcançar a harmonia entre os pólos extremos da sociedade, tendo, para isso, como principal instrumento, políticas assistencialistas.”

Kamel conclui: “Muito longe do estereótipo do líder da esquerda operária tradicional – geralmente ateu, arauto de um novo homem, advogado da reestruturação da família em novos moldes, proponente de um regime político-econômico em que haja supremacia dos trabalhadores em relação aos patrões –, Lula acaba exposto, por suas próprias palavras, como um brasileiro médio mais ou menos crente em Deus, defensor do modelo tradicional de família e que se vê como o proponente de uma sociedade capitalista onde haja mais harmonia entre pobres e ricos”.

Lula é, sem dúvida, um animal político e um grande comunicador. Sua história de vida, carregada de carências e sofrimento, enrijeceu sua personalidade e o transformou num homem decidido a vencer a qualquer preço. Mas é precisamente na têmpera da sua obstinação que reside a sua maior fragilidade ética. O projeto de poder de Lula não admite barreiras éticas. Em nome da governabilidade e da perpetuação no poder, Lula se aliou ao que de pior existe na vida pública brasileira. A relativização dos valores e a condescendência com os companheiros e aliados envolvidos em graves irregularidades virou rotina na fala presidencial.

O presidente Lula tem méritos indiscutíveis. Iniciou o resgate da dívida social, foi prudente na condução da economia e deu ao Brasil, pela força de seu carisma e pelos bons ventos que sopraram nos seus mandatos, grande prestígio internacional e notável popularidade interna. Além disso, ao contrário de seus colegas, não entrou no desvio do terceiro mandato. Na reta final de seu governo, tão carregado de força simbólica, o presidente bem poderia encarar a recuperação da ética. Impossível? Talvez. Mas no crepúsculo do governo, feitas as contas, começa a pesar o legado para a história.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia e colaborador deste blog.
difranco@iics.org.br

sábado, 12 de setembro de 2009

RADIOGRAFIA DE UM ACORDO por Carlos Alberto Di Franco


O Brasil, não obstante o empenho dos paladinos da luta de classes, é um país tolerante. A miscigenação, traço característico da nossa cultura secular, é um fato, independentemente de questionamentos artificiais dos que querem reduzir a beleza humana do multicolorido racial ao artificialismo de uma pátria em preto-e-branco. Na religião, igualmente, o Brasil tem sido um modelo de convivência e tolerância. Ao contrário de muitas regiões do mundo, marcadas pelo fanatismo e pelo sectarismo religioso, o Brasil é um sugestivo caso de relação independente e harmoniosa entre religião e Estado.

Foi o que se viu recentemente, quando a Câmara dos Deputados aprovou o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé, que agora irá para o Senado Federal, como último passo para a sanção presidencial. O conteúdo desse instrumento jurídico firmado por dois Estados soberanos é, estou convencido, um bom exemplo de como se pode harmonizar a laicidade do Estado e a liberdade religiosa.

Naturalmente, nem todos vêem dessa forma. Respeito as opiniões contrárias. Parece-me que seria interessante analisar brevemente alguns pontos deste Acordo, mostrando que está claramente inserido na nossa tradição de respeito à diversidade. Em primeiro lugar, o Acordo não cria qualquer tipo de privilégio para a Igreja Católica. A leitura dos 20 artigos do Tratado, que recomendo a todos, evidencia que o tom é reconhecer disposições que já estavam presentes de forma esparsa em nosso ordenamento jurídico. Por exemplo, o art. 15 do Tratado dispõe: “Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição brasileira”. Trata-se de um reconhecimento daquilo que a Constituição já estabelecia, ao definir as limitações ao poder de tributar, sublinhando que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto” (art. 150, VI, b). Reconhece-se que a liberdade religiosa é um direito fundamental, não podendo o Estado dificultar o seu exercício através da tributação, como também ocorre por exemplo em relação aos partidos políticos ou às entidades sindicais.

O tratamento dado pelo Acordo ao ensino religioso sofreu algumas críticas, na suposição de que feriria o caráter laico do Estado brasileiro. Tal visão, no entanto, não reflete a postura da Constituição brasileira, que estabelece que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (art. 210, § 1º). O caráter laico do Estado está assegurado ao se definir que a matrícula é facultativa.

O Brasil e a Santa Sé, no mencionado Acordo, também “reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro” (art. 6º). Esse aspecto não enseja novidade a nenhum brasileiro. Basta citar, por exemplo, o Páteo do Colégio, em São Paulo, os Mosteiros de São Bento do Rio de Janeiro e de São Paulo, a Igreja e o Convento de São Francisco em Salvador, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), onde se encontram diversas esculturas do Aleijadinho e que é reconhecido como Patrimônio Mundial da Unesco. O Estado brasileiro não pode ser indiferente a este patrimônio, já que seria desprezar a nossa própria história.

O Acordo não se refere às verdades religiosas, nem tem a menor pretensão de abordar o tema da “verdade”, mas vem consolidar, num único instrumento, o estatuto jurídico da Igreja Católica, à qual pertencem 74% dos brasileiros (segundo dados da FGV). Um Estado laico pede transparência, reconhecimento das lícitas realidades sociais, respeito à liberdade religiosa. Nesse sentido, o Acordo é um bom passo, dentro da nossa tradição de convivência pacífica e harmoniosa.


Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo,
professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de
Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia e colaborador deste blog. difranco@iics.org.br